Monday, September 26, 2005

Brado de "Modo Livre"

Injustiçado no Brasil? Louvado no exterior? Talvez, mas isso não o impede de sempre ter um disco novo sendo lançado... É DVD pra lá, CD pra cá e participações especiais acolá. São poucas as carreiras musicais que passam pela História imunes às oscilações da crítica e do apreço popular. Até João Gilberto, para muitos a encarnação de deus na Terra, já levou umas bordoadas por se associar a Caetano Veloso e gravar pela incerta última vez "Desafinado".

João Gilberto talvez seja o exemplo mais tangível pela classificação da produção musical que se faz antes e depois do toque de seu violão em "Canção do amor demais". Foi (e é) amplamente divulgado o rito de passagem que praticou, catalisador da modernização da música brasileira. E o que dizer de Ivan Lins? É mais um caso de sucesso popular que ofusca um passado pouco conhecido.

A partir da sua estréia, foi ator de uma das trajetórias mais idiossincráticas de que se tem notícia. Premiado em festival no início da década de 1970, conseguiu que sua "Madalena" fosse logo gravada por Elis Regina, então porta-voz de novos talentos, sem antes dizer que aqui "é o meu país" no apogeu do governo Médici, tido como o mais repressor de toda a ditadura militar brasileira. Naquele tempo do certo e do errado, do bem e do mal, da direita e da esquerda, ficava difícil não adjetivar “O amor é o meu país” como ufanista. Sob a pressão publicitária oficial, divulgada através do "slogan" Ame ou deixe-o, era um reforço à campanha promovida contra os "desertores da pátria".

Os artistas ou as proto-celebridades que não declaravam um posicionamento político bem delineado eram considerados alienados pelos engajados da dita esquerda. Isso é por demais conhecido. (Wilson Simonal é um clássico do gênero). As dubiedades e ambigüidades, muito presentes no comportamento de Ivan Lins, não eram toleradas. Afinal, a liberdade era almejada, mas sempre com um certo limite moralista, seqüela que nos foi legada e que anistia alguma pode perdoar.

Ronaldo Monteiro de Souza e Vitor Martins eram seus principais parceiros ao lado do quase onipresente Paulo César Pinheiro. Será que artistas que não eram visivelmente estabelecidos no plano político acabavam por ofuscar a visão da censura prévia? Passaram despercebidos versos como “Você não tem o direito /De calar a minha boca”, “Espero um dia na vida /Rever os meus becos antigos /Meus companheiros de copo”, “Me dá a conversa vadia de esquina /Pra depois me jogar a polícia por cima”. Inegável o seu ousado palavreado diante das circunstâncias fluentes na época.

Com o “aperfeiçoamento estético”, seu canto, a partir de “Chama acesa” (RCA/Sony-BMG, 1975), começou a ficar estridente, maneirista, afetado, cheio de filigranas, perdendo, assim, a contenção vocal presente nas gravações anteriores, em sincronia com o início do declínio da repressão política, simbolizado pela troca de Médici por Geisel. É comovente a interpretação atormentada, de “longo bardo”, permeada por um piano nada conformista, que Ivan Lins deu a “Chega” (“Modo Livre”, RCA/Sony-BMG, 1974), culminando em samba-soul, suingado. Elis Regina masculina? A mesma sinceridade pode ser percebida em “Deixa eu dizer”, com recheio samba-jóia, e na gritante veemência de “Abre alas”, ambas também de “Modo Livre”.

Suas composições, infelizmente, tomaram o rumo do “frenesi”. “Dinorah, Dinorah”, por exemplo, é de uma eloqüência pasteurizada que não transmite nada além do refrão grudento, reconhecido mundialmente graças a uma gravação feita por George Benson. Mas isso não importa. Seus primeiros discos são fundamentais para entender as variadas “correntes” musicais do Brasil da primeira metade da década de setenta.

Ao final, fica a obra de quem dizia, desde moço, que “as pessoas têm que gostar de mim como eu sou /E não como você quer que eu seja”.

(Foto: Ivan Klingen)

Colocado originalmente em 28/07/05 no domingosjunior.multiply.com

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