Monday, October 03, 2005


"El CID"



Não, não se trata do herói espanhol Rodrigo Diaz, protagonista do filme que titula esse texto, interpretado pelo presidente da Associação Nacional do Rifle, nos Estados Unidos, Charlton Heston.

O ano é 1.975. Nana Caymmi e Emílio Santiago gravam LPs, pela CID – Companhia Industrial de Discos, do diretor artístico Durval Ferreira, o “Gato”, que, com sua “Batida diferente”, levou um pouco de “balanço zona norte” ao desabrochamento bossa-novista da zona sul carioca do início da década de 60.

O ex-“crooner” da banda de bailes do “rei dos teclados” dos 60 e 70, o cearense Ed Lincoln, e a “Branca”, filha do mulato Dorival, deixaram registradas, em 1.975, sobretudo, músicas de amor. Cada um à sua maneira, Nana e Emílio cantaram coisas do amor, sem se esquecer do suingue, em alta naquele momento, lembrado pelo samba estilizado de “Passarela” (Carlos Dafé) e pelo indefectível “míusiqui” do “Brother” Jorge Ben (Jor).

Dizer que a família Caymmi é uma das mais musicais do país não é nenhuma novidade. Além do patriarca Dorival, para quem “todo caminho deu no mar”, como atesta o pequeno texto escrito por ele para a contracapa do disco de sua descendente, seus três filhos, Dory, Nana e Danilo, também se enveredaram pela música. Dorival é imbatível. É o maior cantador do mar continental do Brasil. Sua fixação pelas águas marinhas foi tanta que se casou com Stella Maris, a Estrela do seu Mar. As suas “canções praieiras” têm a simplicidade e a complexidade dos caiçaras e dos pescadores, subsistentes daquilo que colhem ao redor e dentro do mar.

Mas não só as praieiras, junto com sua voz rouca e firme, foram responsáveis por torná-lo o artista Dorival Caymmi que é. Suas composições românticas de temática universal, feitas durante o período em que morou no Rio de Janeiro, como “Só louco”, “Nem eu”, “Sábado em Copacabana”, usam do amor sem a burocracia e o pedantismo beletrista que caracterizaram as décadas de 40 e 50. São clássicas, pois.

Nana chegou ao auge da sua maturidade profissional nos anos 70 do século passado. Seu disco de 1.975 é talvez a obra mais bem acabada de toda a sua carreira, ao mostrar sua ótima técnica vocal, que lhe é tão cara. Vai rapidamente do grave ao agudo, ligeira. Impressionante. Comovente. Em “Medo de amar”, de Vinicius de Moraes, Nana tenta nos fazer compreender que "o ciúme é o perfume do amor”, só para se ter uma breve noção da intensidade daquilo que sua voz transmite.

Com repertório eclético (de quando atribuir a algo ou alguém essa adjetivação não era ofensivo), parte do nepotismo fraterno dos arranjos de Dory e alcança compositores próximos da sua geração, como Ivan Lins (“Tens”), Carlos Dafé (autor da já citada “Passarela” e de “Acorda que eu quero ver”) e Toninho Horta, com seu “Beijo partido”, mensageiro de lapidar sinceridade.

Para deleite dos fetichistas, o álbum de 1.975 conta com o toque do piano de Tom Jobim em “Canção em modo menor” e, para satisfação dos tecnicistas, com o contracanto de Milton Nascimento em “Ponta de areia”. Acima de tudo, paira a derradeira atuação em disco do simbólico pianista Tenório Jr., vítima fatal do erro mais velado à que a chamada “Operação Condor”, arquitetada pelas ditaduras militares dos países integrantes do Cone Sul, deu causa.

Nana, ainda pela CID, gravou mais um disco em 1.976, “Renascer”, em que começava a aparecer o ranço melodramático caracterizador de suas atuações desde então.

O disco de Emílio Santiago apresenta um plantel de compositores e instrumentistas, das antigas e da hora, capitaneados pelo produtor Durval Ferreira. Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito (“Quero alegria”), Zé Kéti (“Nega Dina”), o flautista Copinha e os trombonistas Maciel representam a “velha guarda”. João Donato, Ivan Lins (“Depois” e “Doa a quem doer”), João Nogueira (“Batendo a porta”), o cultuado grupo Azimuth e o guitarrista Helio Delmiro, além de uma composição do casal Edson e Tita Lobo (“Sessão das dez”), exibem sua mocidade musical.

Emílio acabou perdendo o foco no espectro de cores das “Aquarelas brasileiras”, sem antes deixar consignado “Feito para ouvir” (Phonogram-Universal/1.977), disco de canções amorosas, no limite do romantismo desenfreado.

Nana tentou reinventar-se nos anos 90, gravando um CD de boleros (EMI-Odeon/1.993) e outro em homenagem a Dolores Duran (“A noite do meu bem”, EMI-Odeon/1.994).

A CID, por sua vez, acompanhou, à sombra, o trajeto em declive de Emílio Santiago, ou vice-versa. No fim da década de 80, a gravadora “lançava” LPs de “covers” de Julio Iglesias, embalados por capas com mulheres de maiô, vendidos nos supermercados da hiperinflação. Em seu catálogo, constam coletâneas e mais coletâneas de músicas, digamos, eufemisticamente, “românticas”.

A indústria discográfica de Durval Ferreira garantiu-lhe sustento ao longo da vida, pondo na ciranda discos do malandro Bezerra da Silva, sucesso em vendas, mas não propiciou seu “début” solo, ocorrido em 2.004 (!), com a gravação de “Batida diferente”, seu primeiro disco autoral, pelo selo então recém-inaugurado, “Guanabara Records”, idealizado por “amigos do Rio”. Por que demorou tanto tempo para lançar um álbum próprio e ainda por outra gravadora? Com ou sem vergonha? Pura ironia? Não importando a resposta dada, “Estamos aí”.
Fotos: Alexandre de Souza Lima e Ronaldo Cientista
Colocado originalmente em 15/08/05 no domingosjunior.multiply.com

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