Thursday, September 29, 2005

"Plumas e paetês"


MARCELO COELHO
Como embelezar São Paulo (e sair ganhando com isso)

Direitos todo mundo tem: à saúde, à educação, à moradia, à segurança... Verdade é que essas coisas muitas vezes ficam no papel. Mas há um direito humano, lembrado por Anatole France, que até hoje ninguém ousou desrespeitar: o de dormir debaixo da ponte. Eis, frisava o escritor, uma prerrogativa que o Estado assegura "tanto aos mendigos quanto aos milionários".Recente iniciativa do prefeito José Serra parece colocar em xeque essa evidência. Na passagem subterrânea entre a avenida Paulista e a Doutor Arnaldo, surge uma verdadeira inovação em termos de arquitetura pública: a "rampa antimendigo". Trata-se de um piso inclinado, com superfície áspera, que impede os miseráveis de se abrigarem no lugar.Já era um espaço bastante exíguo e disputado. O motorista que sai da Doutor Arnaldo e avança por aquela espécie de túnel começa reparando nas pinturas murais que enfeitam o caminho. Vê simpáticos grafites, figurinhas dançantes, uns ETs sorridentes e, à medida que o túnel se aprofunda, toma contato com ótimas reproduções de quadros modernistas: uma praia de Pancetti, uma paisagem de Tarsila, algumas mulheres de Di Cavalcanti ilustram aquele buraco urbano.Quando subimos de novo em direção à Paulista, o vão de parede disponível para as pinturas diminui; só então, num ângulo espremido entre dois planos de calçada, é que vemos amontoados alguns seres humanos entre sacos de lixo, caixotes desmontados, fardos de roupa velha e ruínas de um colchão.Construída como a arquibancada de um imaginário estádio para ratazanas, a obra da prefeitura ocupa esse pedaço do túnel, cuidando de desalojar os mendigos que dormiam por ali. A não ser que eles insistam em se deitar no novo plano inclinado, correndo o risco de rolar até o asfalto, onde terminariam providencialmente atropelados. De todo modo, a rampa ganhou um revestimento de chapisco, desconfortável o bastante para dissuadi-los da imprudência.Chapisco? A palavra é demasiado vulgar. O melhor seria chamar de textura rústica a camada que recobre as rampas. Fico pensando de que modo se optou por esse pormenor decorativo. Afinal, não dá para saber quais os níveis de desconforto necessários para impedir um mendigo de se deitar onde quer que seja.Por que não usar cacos de garrafa? Tudo ganharia um colorido nostálgico e suburbano, figurando uma São Paulo de outros tempos. Ou então pregos, espetos... Ah, mas aí seria extremismo. Nosso "dispositivo inclinado de afastamento de população indesejável" (diapi) não precisa agredir ninguém. Cumpre apenas, silenciosamente, o que a polícia ou a guarda municipal não poderiam fazer sem empregar um bocado de violência física.E ninguém é violento por aqui. Só eles, é claro, os que se escondem no subterrâneo."Não se trata de rampa antimendigo", protesta com veemência o subprefeito da Sé em carta à Folha na última segunda. "A área, como é público e notório, servia para acoitar delinqüentes que se misturavam a pessoas que eventualmente moravam ali, também elas vítimas da ação criminosa."Imagino então que as vítimas, uma vez expulsas do local, estejam agradecendo à prefeitura. Lamento, em todo caso, que se tenha perdido uma oportunidade rara de prender delinqüentes: não são muitos os que se deixam localizar em endereço fixo, público e notório.Quem sabe, em vez de um plano inclinado, a prefeitura não deveria ter construído grades debaixo do viaduto: uma parceria com o governo Alckmin criaria ali uma interessante alternativa prisional.Seja como for, poderemos apreciar melhor as comoventes réplicas de Portinari que, naquele trecho exato da passagem subterrânea, sofriam a concorrência dos mendigos reais. Admirem-se, portanto, aqueles esquálidos retirantes em sutis matizes de azul e cinza, corvos voejando em volta e lágrimas saindo aos jorros dos olhos de crianças famintas. Sabia das coisas o velho Portinari. Um pouco ultrapassado talvez.Afinal, a arte engajada está fora de moda e não condiz com o ritmo pragmático da cidade. A nova rampa, lembrando uma escultura abstrata, rigorosa e pura, vem aludir a períodos ulteriores, menos conteudísticos, de nossa evolução estética. A não ser que represente uma homenagem ao auditório de Niemeyer no parque Ibirapuera e ao tobogã do Pacaembu. Se não nos atrapalhassem os mendigos, poderíamos apreciar muitas harmonias ocultas na paisagem paulistana.Uma dúvida, entretanto. Será que, apesar de sua austeridade construtiva, essa rampa não é um instrumento de autopromoção do prefeito? Fala-se nele como candidato à Presidência da República. Terá alguém inconscientemente desenhado uma minirrampa do Planalto nos subterrâneos da Paulista? Sem esquecer que o seu próprio sobrenome sugere, a exemplo da nova obra, algo de escarpado, íngreme, difícil de subir.Mas a determinação ascensional da prefeitura não pára por aí. Lança-se em direção aos postes da Eletropaulo. Sim, noticia-se a criação de uma taxa sobre tal equipamento urbano. O raciocínio é que os postes, sendo coisas privadas (em especial para os cachorros, aliás), ocupam um lugar público, as calçadas. Cabe, portanto, uma cobrança. Por que não?Juntando uma coisa à outra, ocorre-me a solução definitiva para o caso da Paulista: cobrar imposto dos mendigos. Afinal, eles se apropriam de um bem público e o utilizam para fins pessoais. Exigindo-lhes uma taxa módica, conseguiríamos expulsá-los dali sem precisar gastar um tostão em rampas e chapiscos. Nada como os mecanismos de mercado. É o que eu sempre digo.
@ - coelhofsp@uol.com.br
Folha de S.Paulo, quarta-feira, 28 de setembro de 2005, pág. E-10

Monday, September 26, 2005

Brado de "Modo Livre"

Injustiçado no Brasil? Louvado no exterior? Talvez, mas isso não o impede de sempre ter um disco novo sendo lançado... É DVD pra lá, CD pra cá e participações especiais acolá. São poucas as carreiras musicais que passam pela História imunes às oscilações da crítica e do apreço popular. Até João Gilberto, para muitos a encarnação de deus na Terra, já levou umas bordoadas por se associar a Caetano Veloso e gravar pela incerta última vez "Desafinado".

João Gilberto talvez seja o exemplo mais tangível pela classificação da produção musical que se faz antes e depois do toque de seu violão em "Canção do amor demais". Foi (e é) amplamente divulgado o rito de passagem que praticou, catalisador da modernização da música brasileira. E o que dizer de Ivan Lins? É mais um caso de sucesso popular que ofusca um passado pouco conhecido.

A partir da sua estréia, foi ator de uma das trajetórias mais idiossincráticas de que se tem notícia. Premiado em festival no início da década de 1970, conseguiu que sua "Madalena" fosse logo gravada por Elis Regina, então porta-voz de novos talentos, sem antes dizer que aqui "é o meu país" no apogeu do governo Médici, tido como o mais repressor de toda a ditadura militar brasileira. Naquele tempo do certo e do errado, do bem e do mal, da direita e da esquerda, ficava difícil não adjetivar “O amor é o meu país” como ufanista. Sob a pressão publicitária oficial, divulgada através do "slogan" Ame ou deixe-o, era um reforço à campanha promovida contra os "desertores da pátria".

Os artistas ou as proto-celebridades que não declaravam um posicionamento político bem delineado eram considerados alienados pelos engajados da dita esquerda. Isso é por demais conhecido. (Wilson Simonal é um clássico do gênero). As dubiedades e ambigüidades, muito presentes no comportamento de Ivan Lins, não eram toleradas. Afinal, a liberdade era almejada, mas sempre com um certo limite moralista, seqüela que nos foi legada e que anistia alguma pode perdoar.

Ronaldo Monteiro de Souza e Vitor Martins eram seus principais parceiros ao lado do quase onipresente Paulo César Pinheiro. Será que artistas que não eram visivelmente estabelecidos no plano político acabavam por ofuscar a visão da censura prévia? Passaram despercebidos versos como “Você não tem o direito /De calar a minha boca”, “Espero um dia na vida /Rever os meus becos antigos /Meus companheiros de copo”, “Me dá a conversa vadia de esquina /Pra depois me jogar a polícia por cima”. Inegável o seu ousado palavreado diante das circunstâncias fluentes na época.

Com o “aperfeiçoamento estético”, seu canto, a partir de “Chama acesa” (RCA/Sony-BMG, 1975), começou a ficar estridente, maneirista, afetado, cheio de filigranas, perdendo, assim, a contenção vocal presente nas gravações anteriores, em sincronia com o início do declínio da repressão política, simbolizado pela troca de Médici por Geisel. É comovente a interpretação atormentada, de “longo bardo”, permeada por um piano nada conformista, que Ivan Lins deu a “Chega” (“Modo Livre”, RCA/Sony-BMG, 1974), culminando em samba-soul, suingado. Elis Regina masculina? A mesma sinceridade pode ser percebida em “Deixa eu dizer”, com recheio samba-jóia, e na gritante veemência de “Abre alas”, ambas também de “Modo Livre”.

Suas composições, infelizmente, tomaram o rumo do “frenesi”. “Dinorah, Dinorah”, por exemplo, é de uma eloqüência pasteurizada que não transmite nada além do refrão grudento, reconhecido mundialmente graças a uma gravação feita por George Benson. Mas isso não importa. Seus primeiros discos são fundamentais para entender as variadas “correntes” musicais do Brasil da primeira metade da década de setenta.

Ao final, fica a obra de quem dizia, desde moço, que “as pessoas têm que gostar de mim como eu sou /E não como você quer que eu seja”.

(Foto: Ivan Klingen)

Colocado originalmente em 28/07/05 no domingosjunior.multiply.com

Thursday, September 22, 2005

"O barítono do Piauí"
Foi essa a expressão usada pelo deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), no final da reunião conjunta entre as CPMIs dos Correios e do "mensalão" de ontem, que ouviu o depoimento do "investidor" Daniel Dantas, para se referir ao senador Heráclito Fortes (PFL-PI), aquele que deve ter na boca uma batata ainda mais quente do que a da "personalidade" Fernando Henrique Cardoso.
O senador Fortes reagiu ao epíteto recebido, dizendo que o deputado Ferro teria feito um insulto à classe musical. O parlamentar pernambucano, não satisfeito, começou o "bate-boca" e revidou ao por ele então chamado "Pavarotti do Piauí".
Só para tentar esclarecer toda essa perda de tempo, o italiano Luciano Pavarotti é tenor, e não barítono...

Monday, September 19, 2005


Depois de relutar muito, mais um "weblog" foi criado. Uns diziam que os textos tinham que ser mais fáceis de encontrar; outros, que era uma forma de "salvar" os arquivos... Não importa. Mais um vencido. E derrotados/vencidos/sopeados serão os norteadores dessa história, só para ser contada de outra maneira que não pela óptica triunfal dos bem-sucedidos.

Para começar, vêm algumas coisas mais antigas. A seguir, texto colocado em 03/06/05 no domingosjunior.multiply.com.



Pilhéria

Ideal para uma "smooth" fossa, daquelas não tão sofridas quanto as da Maysa.




Foto: Ivan Klingen

Estava escutando, em CD, o disco “Meia-Noite” (RCA/BMG, 1.976), da cantora Maria Creuza. O álbum foi produzido sofisticadamente pelo sambista e gaitista Rildo Hora, que assina, em letra corrida, a contracapa, da mesma maneira que Creed Taylor fazia na Verve.

A faixa n°. 3 calha a fiveleta, como diria o outro.

“Palavras Cruzadas”

Na arte de viver sou um fracasso.
Minha vida é uma pilhéria.
É sempre o mesmo erro a cada passo.
Minha vida é uma comédia.
Meus amores, um fiasco.
Meu destino
são palavras cruzadas.
Que se cruzam,
que se lançam.
Sem nenhuma diretriz.
Ah...
O que é que eu fiz?
Pra viver atormentado...
Dizem que sou mau amante,
acho que sou mal amado.

Minha vida é uma pilhéria...
Minha vida é uma comédia...
Meus amores um fiasco.
Meu destino
são palavras cruzadas.
Que se cruzam,
que se lançam.
Sem nenhuma diretriz.
Que é que eu fiz?
Pra viver atormentado...
Dizem que sou mau amante,
acho que sou mal amado.
Que é que eu fiz?
Pra viver atormentado...
Dizem que sou mau amante,
acho que sou mal amado.

Sou mal amado...
Sou mal amado...

Essa música é de autoria da dupla Antonio Carlos e Jocafi, compositores baianos contemporâneos da também baiana Maria Creuza, que, aliás, foi lançadora de várias peças de seus conterrâneos e casada com Antonio Carlos.

Tidos como representantes do chamado “samba-jóia”, vertente de cunho mais popular e romântica do samba que fez muito sucesso na década de 70, ao lado d’Os Originais do Samba, de Benito di Paula e da também dupla Tom e Dito, são, até hoje, considerados injustamente compositores “menores”, relegados a segundo plano no cancioneiro setentista.

O álbum conta ainda com uma equipe de arranjadores de primeiríssima linha, como Antonio Adolfo, Geraldo Vespar, Waltel Branco e o erudito Luiz Eça, responsável pelos arranjos (que incluem até harpa!) de três das faixas do disco: a que dá nome ao disco, de autoria de Antonio Carlos e Jocafi, “A Distância” de Erasmo e Roberto Carlos e a própria “Palavras Cruzadas”, com impecável seção de cordas.

"Tortura de Amor", da lavra de Waldick Soriano (sim, o intérprete original de "Eu Não Sou Cachorro, Não"), se torna com Maria Creuza um bolerão derramado, de dilacerar o coração dos mais insensíveis.

Imperdível a capa interna que retrata a cantora, em traje de gala vermelho, deitada num sofá de uma sala, curtindo uma fossa (de seu repertório?), em cenário absurdamente mid-70´s.