Cambalacho
Folha de S. Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005, pág. E2
MÔNICA BERGAMO
Você é culto e elegante?
Está em dúvida? Acaba de chegar às livrarias um guia de auto-ajuda para resolver esse dilema.
Até a psicanalista e socialite Eleonora Mendes Caldeira, uma das mais conhecidas anfitriãs da cidade, amiga da ex-prefeita Marta Suplicy, casada com o empresário Ivo Rosset e musa da canção "Morena dos Olhos D" Água", de Chico Buarque, diz que "sempre" se pergunta: "Afinal, o que é ser elegante?". E culta?
Pergunta complicada, resposta mais ainda. Mas os quinze autores do livro "Cultura & Elegância", organizado pelo historiador Jaime Pinsky, acharam que poderiam dar a sua contribuição para que, em capítulos como "o que você precisa ler", "o que você precisa ouvir" e "o que você precisa ver", seus leitores encontrassem um caminho para que se tornar, como diz um deles, "um ser humano mais admirável". O livro acaba de chegar às livrarias. A coluna selecionou os trechos de alguns capítulos:
OS DISCOS
O crítico André Domingues faz a lista de "dez discos brasileiros". E dá outras indicações de obras da MPB obrigatórias para "cultos" e "elegantes", aquelas que "é impossível você ainda não ter ouvido" ("Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, "Carinhoso", de Pixinguinha, e "Copacabana", de Alberto Ribeiro e Braguinha) e as que "precisa ouvir" ("Seu Chopin, desculpe", de Johnny Alf, "Influência do Jazz", de Carlos Lyra, e "A Banca do Distinto", de Billy Blanco). O maestro Julio Medaglia apresenta o beabá do clássico e recomenda: "Comece pelo canto gregoriano". O crítico Carlos Calado indica os discos de jazz.
DICAS
1)"Não use em grandes quantidades loção, perfume, mousse ou qualquer produto que possa causar alergia a seus vizinhos num concerto. Muitos espirros e tosses seriam evitados se as pessoas pensassem nos outros ao se arrumar para o evento", diz Medaglia;
2)"Não bata os pés, não tamborile os dedos, não fique mudando a cabeça de posição o tempo todo;
3)"Nunca aplauda entre os movimentos. Se não souber quando aplaudir, espere que os outros o façam antes".
DEZ DISCOS BRASILEIROS
"Bebadosamba" (Paulinho da Viola)
"Cartola" (1976)
"Caymmi: Amor e Mar"
"Clube da Esquina" (Milton e Lô Borges)
"Construção" (Chico Buarque)
"Elis & Tom"
"O Grande Circo Místico" (Chico Buarque e Edu Lobo)
"O Mito (The Legendary)" (João Gilberto)
"Rosa de Ouro" (Clementina de Jesus, Aracy Côrtes e Conjunto Rosa de Ouro)
"Tropicália ou Panis et Circensis" (Caetano, Gil, Tom Zé, Nara Leão e Os Mutantes)
DEZ DISCOS DE JAZZ
"Bird and Diz" (Charlie Parker & Dizzy Gillespie)
"Birth of the Cool" e "King of Blue" (Miles Davis)
"Black Codes" (Wynton Marsalis)
"Ellington at Newport" (Duke Ellington)
"Free Jazz" (Ornette Coleman)
"Hot Fives, vol.1" (Louis Armstrong)
"I Sing the Body Electric" (Weather Report)
"Mingus Ah Um" (Charles Mingus)
"Presents the Bandwagon" (Jason Moran).
CLÁSSICOS
"A Sagração da Primavera" (Igor Stravinsky)
"Gymnopedies" (Erik Satie)
"Till Eulenspiegel" (Richard Strauss)
"Noturnos" (Debussy)
"Carmina Burana" (Carl Orff)
TEATRO
"Vá a teatro, mas não me convide". A frase, diz Alberto Guzik, que é ator, diretor, dramaturgo, crítico teatral e repórter, "nunca deve ser dita por um cidadão inteligente", pois fará "interlocutores cultos e elegantes erguerem sobrancelhas de susto." No livro, ele fala do teatro, da Grécia aos dias de hoje, e recomenda:
DICAS
1) As peças "Hamlet", "Édipo", "Prometeu", "Dom Juan" e "Vestido de Noiva" "fazem parte da educação obrigatória de um indivíduo minimamente civilizado";
2) "É bom avisar: não basta ver musicais nas Broadways da vida. É preciso ir além";
3) "Quem impressionará mais em uma conversa sobre música?", pergunta Guzik. "Aquele que só fala de trance e tecno ou o sujeito que discorre com facilidade sobre o canto coral grego, as antífonas medievais, os edifícios harmônicos de Bach, os dodecafônicos, o pop?" Com o teatro, diz, ocorre o mesmo.
A ETIQUETA
Coube à articulista Célia Leão escrever o capítulo com orientações de comportamento que, segundo ela, farão do leitor uma presença mais bem-vinda, um profissional que vende bem a imagem, "enfim, um ser humano mais admirável".
DICAS GERAIS
1) A expressão "muito prazer" soa falsa. Diga "como vai" ao ser apresentado a outra pessoa;
2) Expresse prazer ao conhecer famosos. Diga algo como "Prazer em conhecê-lo pessoalmente!";
3) Em lançamentos de livros ou vernissages, siga a regra dos "s": surgir, saudar, sorrir, sair;
4) "Não existe elegância que resista" a erros de português.
DICAS NO TRABALHO
1) Levante-se da cadeira quando receber a visita de um superior hierárquico;
2) Ao expressar desacordo com o chefe, "enfatize os pontos positivos que existem na opinião dele";
3) Lembre-se: espera na linha quem fez o chamado telefônico.
AS CIDADES
De acordo com o livro, "o mundo, vasto mundo, oferece mil roteiros". Mas só um, afirma Dad Squarisi, que fez o capítulo sobre "grandes destinos", é "essencial": o chamado circuito Elizabeth Arden, que inclui Nova York, Paris, Londres e Roma.
DICAS
1) Dad lista "cinco praças de Roma" para serem visitadas: Campo dei Fiori, Piazza del Campidoglio, Piazza del Popolo, Piazza di Spagna, Piazza Venezia;
2) Em Paris, além de cafés outrora freqüentados por intelectuais, Dad recomenda "explorar as bordas do Sena com suas barraquinhas e livros"; e lista cinco museus: Cluny, de arte medieval, Louvre, Picasso, Rodin, Palais de Chaillot;
3) "Cinco lugares imperdíveis em Londres", segundo ela: Abadia de Westminster, Museu Britânico, Hyde Park, Palácio de Buckingham e Piccadilly Circus;
4) A Harrod's, "loja dos ricos e famosos", diz, "simboliza a aristocracia e a perdição. Em dia pré-marcado, fecha as portas aos pobres mortais para atender à rainha";
5) Cinco lugares de Nova York: Central Park, Metropolitan Museu of Art, MoMa, Quinta Avenida e Rua 57, "o endereço da alta-costura nova-iorquina.
OS LIVROS
"Você está num bar, conversando com amigos (...) e de repente pessoas começam a falar sobre os livros que já leram. E aí você se dá conta de que é como se morasse em um outro planeta", diz o escritor Moacyr Scliar, que indicou livros de ficção. Um livro é chato de ler? "Você precisa insistir consigo mesmo, teimar, não desistir fácil da tarefa de encontrar num livro tão elogiado por tantas pessoas cultas o que pode tê-las atraído", diz o jornalista Daniel Piza, que deu dicas de livros de não-ficção.
CLÁSSICOS
Ficção:
"Ilíada" (Homero)"
As Aventuras de Tom Sawyer" (Mark Twain)"
As Ilusões Perdidas" (Balzac)"
As Viagens de Gulliver" (Jonathan Swift)
"Crime e Castigo" (Dostoiévski)
"Dom Quixote" (Miguel de Cervantes)
"Guerra e Paz" (Tolstoi)
"Madame Bovary" (Flaubert)
"Oliver Twist" (Charles Dickens)
"Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister" (Goethe)
Não-ficção:
"Cartas Filosóficas" (Voltaire)
"Elogio da Loucura" (Erasmo de Rotterdam)
"Ensaios" (Montaigne)
"O Anticristo" (Nietzsche)
"O Príncipe" (Maquiavel)
FICÇÃO BRASILEIRA
"A Hora da Estrela" (Clarice Lispector)
"Dom Casmurro" (Machado de Assis)
"Grande Sertão: Veredas" (Guimarães Rosa)
"Macunaíma" (Mário de Andrade)
"Mar Morto" (Jorge Amado)
BIOGRAFIAS
"Churchill" (Roy Jenkins)
"Goya" (Robert Hughes)
"Beethoven" (Lewis Lockwood)
"Einstein" (Abraham Pais)
"Newton" (James Gleick)
OS MUSEUS
Para cumprir a lista básica de museus indicada por Jaime Pinsky, é preciso quase dar a volta ao mundo. E que volta: Paris, Estocolmo, São Petersburgo, Nova York, Jerusalém e Londres.
DICAS
1) É recomendável que se comprem presentes em museus, pois isso denota "cultura e classe". "E você não quer ser culto e elegante?", pergunta Pinsky;
2) Prepare roteiro com antecedência. Tenha personalidade e, na volta, assuma que não viu tudo, mas viu bem;
3) Use roupas e calçados confortáveis. Não corra o perigo de ganhar um calo ou uma bolha;
4) Atrações "imperdíveis" no Louvre: "Mona Lisa", "Vênus de Milo", "O Livro dos Mortos", "O Escriba Sentado", "Morte de uma Virgem", "A Liberdade Conduzindo o Povo", "Rendeira", "A Bela Jardineira" e "Cristo na Cruz".
FILMES
Polemizar sobre cinema "é sempre um tempero capaz de animar a mais monótona das reuniões sociaisociais", acredita o crítico Luciano Ramos, que indicou filmes nacionais e internacionais que podem ajudar o leitor a não boiar nas discussões. Abaixo, uma delas, a dos "melhores filmes de todos os tempos":
LISTA BÁSICA
"Cidadão Kane" (Orson Welles)
"Um Corpo que Cai" (Hitchcock)
"A Regra do Jogo" (Jean Renoir)
"O Poderoso Chefão" (Coppola)
"Uma História em Tóquio" (Yasujiro Ozu)
"2001: Uma Odisséia no Espaço" (Stanley Kubrick)
"O Encouraçado Potemkin" (Eisenstein)
"Aurora" (Friedrich Murnau)
"Oito e meio" (Fellini)
"Cantando na Chuva"
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Folha de S. Paulo, terça-feira, 25 de outubro de 2005, pág. A2
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Como se dar bem...
Acaba de ser lançado um livro muito sintomático e sugestivo. Chama-se "Cultura & Elegância". Seu subtítulo é auto-explicativo: "o que se deve fazer e o que é preciso conhecer para ser uma pessoa culta e elegante". Trata-se de obra coletiva, organizada pelo historiador Jaime Pinsky -livre-docente pela USP e dono da editora responsável (a Contexto). Quem a idealizou foi a socialite e psicanalista Eleonora Mendes Caldeira, que assina as três páginas da apresentação.
"A proposta central do livro", nos explica madame, "é a de que uma pessoa elegante interessa-se necessariamente por cultura. (...) Cultura entendida como produção humana para deleite próprio. (...) Elegância, portanto, não é só saber vestir o corpo com a roupa certa e comportar-se adequadamente. É isso também, mas é mais. É alimentar a alma de maneira harmoniosa".
Estamos diante de algo como o "Grito dos Incluídos". Na pauta de reivindicações cada vez mais ampla do individualismo possessivo, a cultura aparece como um estilo de vida que se consome e ostenta. Ou seja: se é verdade que a cultura está mais do que nunca na moda, então é preciso emprestar-lhe um sentido que nos sirva; livrá-la da sua irritante inutilidade (coisa de derrotados!) e desligá-la de seus elos coletivos e/ou sociais (velharia de esquerdistas!). Cultura, sim, mas para "deleite próprio". "Personal culture" -bem entendidos.
A epígrafe desse manual da novíssima etiqueta nos diz: "Elegância é a arte de não se fazer notar aliada ao cuidado sutil de se deixar distinguir". Assina-a Paul Valéry. Com a palavra o jornalista Daniel Piza: "Ter lido Nietzsche na adolescência, por exemplo, me fez muito bem" (pág. 38); "Outra leitura de adolescência, quase no extremo oposto, foi a de Bertrand Russsel" (pág. 39); "Foi mais ou menos na mesma época que descobri o prazer de ler ensaios, e isso ocorreu com o pai de todos os ensaístas: Michel de Montaigne" (pág. 39); "Efeito semelhante me causou Voltaire" (pág. 40); "Também gosto de ler sobre física" (pág. 42). Talvez por modéstia, para não se fazer notar, o autor deixa de mencionar que o livro com frases de Paulo Francis, que ele também indica ("Waaal - O Dicionário da Corte"), foi organizado por... ele mesmo. Mas não se trata de auto-ajuda?
Jaime Pinsky não fica atrás. Escrevendo sobre museus, nos recomenda: "Programe-se para ver as obras de referência (afinal, todo mundo vai perguntar se você as viu, quando voltar)" (pág. 192). Numa companhia dessa, a consultora de comportamento Célia Leão está em casa: "Vale também para os vernissages a regra do "s': surgir, saudar, sorrir e sair" (pág. 210).
Há, entre os 15 textos que compõem o livro, alguns não-risíveis. Ficam, no entanto, comprometidos de antemão pela monstruosidade do conjunto, ele próprio concebido para ser sério e sofisticado, o que só faz acentuar a piada involuntária em que resulta. Guardadas as proporções, Moacyr Scliar protagoniza o seu "momento Fernando Sabino" quando este escreveu "Zélia -uma Paixão".
Serão essas as tábuas de salvação dos intelectuais: vender-se à estupidez do mercado ou render-se à estupidez dos governantes? Reduzida a ingrediente do banquete da auto-ajuda e do consumo, a cultura transforma-se em veículo do colapso do pensamento ao mesmo tempo em que dá sobrevida estéril àqueles que deveriam pensá-la de forma crítica. "Cultura & Elegância" serve como epitáfio ao túmulo onde jazem juntas as ciências humanas, a universidade pública e a esquerda. Poderia ser incluído na seção de humor ao lado do mais recente livro do Casseta & Planeta.
Fernando de Barros e Silva é editor de Brasil. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Roberto Mangabeira Unger, que escreve às terças-feiras nesta coluna.